sexta-feira, 4 de novembro de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXV) – A TOLERÂNCIA POLÍTICA


François Jacob (1989) escreveu que todos os crimes da história são consequência de algum fanatismo. Todos os massacres foram cometidos por virtude, em nome da verdadeira religião, do nacionalismo legítimo, da política idónea, da ideologia justa; em suma, em nome do combate contra a verdade do outro. Infelizmente, algumas pessoas só se sentem bem na política depois de «eliminarem» o seu adversário. Por manifestar a minha preferência ideológica, corro o risco de perder a amizade de pessoas que me são caríssimas porque vivemos numa sociedade em que as pessoas são identificadas não pelas suas qualidades intrínsecas mas pela sua cor política. O bipolarismo político nestas ilhas chega a ser comparado às lutas tribais de algumas regiões do nosso continente – parece que temos dificuldades de conviver com as diferenças.
Por tolerância entende-se «aceitação, respeito e consideração pela diferença, ou seja, a habilidade e a disposição para admitir nos outros formas de pensar e de agir diferentes das nossas e das quais podemos discordar». Porém, a tolerância absoluta (niilismo) é sinónimo de ausência de convicção e de princípios morais.
A intolerância é uma ferida no rosto da humanidade. Alimentou as cruzadas que ceifaram vidas em nome da religião e, recentemente, o fundamentalismo islâmico vem semeando terror no mundo inteiro. No nosso caso, a intolerância política tem transformado algumas fileiras partidárias e associações em inimigos que visam a destruição um do outro. A intolerância nasce do medo e da ignorância. O exercício da tolerância só é possível por meio do conhecimento e passa pela consciência de que não somos donos da verdade.
 Nestes trinta e seis anos como país independente, o nosso grande erro é sem dúvida a intolerância. Dois exemplos evidentes de intolerância na nossa história: após a independência (1975), a ruptura radical com o passado relegou para segundo plano valores como a religião, respeito pelas diferenças e a liberdade de pensamento; após a abertura política (1991), a ruptura com o passado, a tentativa de eliminação política dos adversários, a confusão deliberada entre a liberdade e a libertinagem.
A tolerância não se conquista por decretos mas pela educação e comunicação, não com slogans e discursos mas através da acção como estilo de vida.
Se olharmos para dentro de nós mesmos, se atentarmos às limitações dos nossos dirigentes e do partido que defendemos, iremos encontrar razões suficientes para respeitar e ser mais tolerantes com aqueles que nos opõem.
Lidar com a diversidade, seja ela social, económica, racial ou religiosa não é fácil. Posso gostar deste ou aquele partido político, defender ideais que se identificam com a minha maneira de estar na vida mas nada deverá sobrepor aos valores como a liberdade e os direitos humanos. Pessoas que honram a Deus deveriam ter uma postura de compreensão e tolerância. A melhor forma de honrar a Deus é respeitar o outro como um ser dotado do livre-arbítrio.
A verdadeira tolerância está em se abrir aos outros, ter capacidade de conviver com a diferença, tentando enxergar aquilo que essa diferença tem de melhor e que possa contribuir para o bem comum de todos.
A Assembleia Nacional é o espelho da nação. Os discursos e a postura dos deputados reflectem o estado de ânimo do país real, mas, se tivermos políticos tolerantes teremos uma sociedade tolerante. Penso que a ilha do Sal poderá ser um exemplo disso. As grandes mudanças começam a nível local e no coração do individuo: a diversidade cultural e religiosa da nossa ilha são exemplos dessa mudança.

Evel Rocha




SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXIV): QUE FUTURO PARA O AEROPORTO DO SAL?

Após uma aterragem com algum esforço na pista do aeroporto da Praia, andámos alguns metros até ao portão de chegada. Ao contrário do quadro desolador do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral (AIAC), o aeroporto da capital estava sufocado pela presença de quatro ou cinco aviões de longo curso e o parque automóvel parecia um verdadeiro caos, arrebentando pelas costuras. O tempo de espera pela bagagem foi ocupado numa conversa com dois ilustres salineiros que não deixavam de demonstrar a sua frustrante constatação da inoperância e abandono do Aeroporto do Sal: “4.033 metros quadrados de pista mal aproveitados e à mercê dos gafanhotos do deserto”.
Evel Rocha

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXIV): QUE FUTURO PARA O AEROPORTO DO SAL?
A economia salense, nos últimos anos, foi duplamente castigada: primeiro, a crise internacional que fustigou a economia local sem qualquer medida preventiva e, segundo, a construção de mais três aeroportos internacionais que ajudaram a agudizar a triste situação socioeconómica.
O Aeroporto da Praia teve um crescimento exponencial de movimento de cargas, de passageiros, de aeronaves às custas do abrandamento do AIAC, relegando para o desemprego centenas de trabalhadores de serviços afins e taxistas.
Sem qualquer receio de ser acusado de bairrismo exacerbado, na minha modesta opinião, Cabo Verde não precisa de quatro aeroportos internacionais pela pequenez da nossa jovem nação e debilitada economia. Do meu ponto de vista, foi um erro estratégico que as gerações vindouras terão de pagar e prevejo que, num futuro não muito distante, o AIAC será chamado a ocupar o seu lugar porque é o aeroporto com todas as condições naturais e exigidas pela aeronáutica civil. O volume de investimento na construção dos três aeroportos poderia ter sido canalizado no melhoramento da performance do AIAC, alargar a frota marítima e aérea doméstica de modo a facilitar o escoamento dos passageiros para as outras ilhas.
Hoje, fala-se em transformar o aeroporto do Sal num “hub”, um centro de distribuição de voos, papel desempenhado no passado quando a ilha era o “entreposto” do Atlântico e o gateway do arquipélago. A pretensão de transformar o aeroporto num “hub” de transportes aéreos, plataforma para carga e passageiros e controlo de tráfego aéreo não se resolve apenas com financiamentos externos se não houver um investimento de fundo capaz de oferecer às companhias aéreas e aos passageiros algo diferente daquilo que podem encontrar em outras paragens. Durante as legislativas, falou-se no Sal como um pólo de atracção de eventos internacionais de modo a atrair mais turistas mas tudo não passa de sonhos distantes quando a presente realidade é de uma ilha que vive de um turismo desenfreado e não planeado. Há a necessidade de adequação das actuais infra-estruturas e uma maior atenção à população de baixo rendimento cada vez mais vulnerável, refém da crise e das políticas de desenvolvimento. Antes de qualquer investimento a nível de infra-estruturas, é necessário lembrar que as pessoas devem ser o centro e o fim da decisão política.
Ildo0836@gmail.com
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SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXIII) – DA DESILUSÃO À MATURIDADE POLÍTICA


Há dias, numa conversa com um amigo, este disse-me que a variante crioula da ilha do Sal - uma variante permanentemente em evolução devido às influências das outras ilhas – tenderá a ser o crioulo padrão do arquipélago. A Assembleia Municipal do Sal é um exemplo interessante: praticamente todas as ilhas de Cabo Verde estão lá representadas! Quando as discussões são mais calorosas, alguns deputados recorrem à língua mãe para se expressarem, transformando o salão nobre num «babel» crioulo.
Esta ilha, a cinderella crioula, destaca-se no panorama nacional por outras particularidades: dois terços da população salense é oriunda das outras ilhas; quase tudo o que se consome é importado; Sal é a principal porta de entrada e saída para o mundo e é a mais turística - uma ilha global.
Na esfera socioeconómica, a ilha vive um momento de desilusão. O empreendedorismo foi, desde sempre, a grande alavanca do desenvolvimento económico mas que, nos últimos anos se debate com uma enorme entrave que é a crise internacional. Os empreendedores, durante a crise, foram abandonados à sua sorte com a ausência de uma política de investimento público e a completa inoperância em termos estratégicos para salvaguardar o turismo imobiliário. Na vertente social, segue o risco do desemprego, salários em atraso, aperto financeiro e o desencanto.
Este momento de desilusão é precedido, aos poucos, pela fase de maturidade. Na vida política ela reflecte-se de uma forma extraordinária: a maturidade democrática não se traduz apenas no voto na urna mas na auto-responsabilização e numa maior cidadania. Na generalidade, o salineiro de coração deixa de se identificar com este ou aquele partido para se identificar com as necessidades prementes da sua ilha. As últimas eleições revelam um eleitorado mais consciente e ficou patente que a campanha eleitoral não se faz para eliminar adversários, mas para confrontar projectos, que a consciência do individuo não está à venda e que o poder não se conquista a todo o custo.
O voto tem de ser dotado de consciência política, isto é, da capacidade de se posicionar de maneira racional; os salenses estão a tomar consciência de que as eleições não podem e nem devem ser conduzidos na contramão da ética e da moral cristã. A suposta compra do voto não passa de um desprezo à dignidade humana por parte daqueles que apostam neste estilo de comportamento e merece toda a nossa indignação.
A fase de maturidade, embora lactente, demonstra um salense mais preocupado com as questões da cidadania, mais preocupado em vencer pelo seu próprio esforço, em acreditar mais em si próprio e exigir mais daqueles que pretendem governar o seu destino. Independentemente de quem governa, a ilha do Sal será sempre a nossa bandeira. Por ela debateremos e por ela nunca baixaremos os braços!
Evel Rocha

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXII) – AO NORTE DA ILHA

Já visitei lugares verdejantes, montanhas imponentes mas nenhum deles encerra o encanto do Monte Grande, ao norte da ilha do Sal. Terra pederneiras negras e acobreadas de origem vulcânica cuja cintura desdobra-se em duas emblemáticas colinas granulares que se projectam em direcção ao mar. Apesar dos escassos 406 metros de comprimento, o cone tem uma inclinação bastante acentuada, tornando íngreme a caminhada até ao cume.
Após a subida do monte sentimos mais perto do Criador. Galgar a encosta, sentir a brisa fresca do oceano e ver a beleza estonteante da Fiúra é uma experiência única.
Ao descer o monte que se projecta como uma admirável enseada pelo lado norte até à cintura, somos surpreendidos pelo recanto ao estilo de um anfiteatro que carinhosamente os caminhantes apelidaram de «Abraço Amigo». Pedro, Vatú, Djidjai, Paulo, João Carlos, Chiquinho, Cau e Marina sabem do que eu estou a falar! As raríssimas plantas endémicas entre as escórias vulcânicas sobrevivem da humidade e da brisa oceânica.
A algumas centenas de metro, vislumbramos as ruínas do farol de Fiúra, pensativo, à espera de uma mão amiga de um «bom samaritano» que o ajude a reerguer-se das cinzas. A construção do novo farol demonstra o desrespeito e a insensibilidade pela nossa história – urge resgatar o emblemático farol de Fiúra para iluminar a consciência daqueles que vêm retalhando a nossa história. A magia do norte é embalada pelo assobio harmonioso do pardal-de-terra no seu ritual de acasalamento singrando a atmosfera como um navio em pleno mar, reportando-nos aos tempos da nossa meninência.
A pequena baía de Calhetinha ainda guarda todo o seu encanto milenar e selvagem. As ondas, sob os efeitos dos recifes e da força do vento, parecem noivas em fuga! A minudência paisagística do norte da ilha ostenta uma riqueza geológica que precisa ser registada nos roteiros turísticos do Sal. À distância, as pequenas elevações formadas por minúsculas colunas prismáticas parecem muralhas e catedrais medievais. No norte, a aridez é uma riqueza inigualável porque a solidão transmite paz, tranquilidade e inspiração ao visitante.
Atrás do Monte Grande há muitas histórias por escrever: os vestígios de uma população que vivia da pesca da baleia, de tartarugas e peixes que eram salgados para serem exportados para as outras ilhas, a captura da lagosta, percebes e cracas – o mar de Fiúra afigura-se como o maior viveiro de crustáceos do arquipélago. Ainda estão lá os pardieiros de terra batida, as cercas altaneiras para animais de grande porte como vacas e burros, caminhos antigos, marcos históricos. Há indícios que barcos piratas ancoraram o desembarcadouro de Fiúra mas estes ficarão para os próximos capítulos.
Escrevam o que escreverem, o primeiro campo de concentração de Cabo Verde foi sem sombra de dúvidas a ilha do Sal, a ilha dos desterrados! – os vestígios do passado ao norte da ilha estão lá para provar isso.
Evel Rocha - Ildo0836@gmail.com - http://poemasdesal.blogspot.com/

segunda-feira, 27 de junho de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XXI) – A RIBEIRA FUNDA DA MINHA INFÂNCIA

Será difícil descrever aos moradores de hoje o que era a Ribeira funda do passado. As fotografias e os filmes nos mostram as casas, algumas cobertas de colmo, as ruas de terra batida, crianças que se posam para serem fotografadas, mas não captam a verdadeira vivência, a relação afectiva e o círculo íntimo de solidariedade. Era uma ribeira sem água, era um mundo de trabalho, de paisagens despidas de verde. Das poucas acácias, destacavam-se as duas árvores frondosas da casa de nhô Zé da Graça onde refugiávamos do sol abrasador depois das partidas de futebol atrás de casa de nha Tuda. Um ambiente de cheiros a fumo da lenha, a palha para a alimária, o ruído dos moedores e do pilão, a algazarra das crianças descalças correndo atrás da bola de meia; a rapaziada contando as aventuras do grogue e toucinho; histórias de vida narradas na loja de nha Joana d`Gualdino e de TiBeto; fofocas da vizinhança sob os olhares desconfiados de quem passa com o barril de água. Havia pessoas de todas as ilhas, cada um com seus hábitos e costumes, contudo, vivíamos como uma grande família. Ali morava TiCarlos, o humilde carregador de barris, uma figura incontornável da história salineira, Beto de Shell, um eterno desportista e, também, Zé Cabral, activista cultural que deu nome ao anfiteatro de Espargos.
Ribeira Funda, nos seus traços de ruralidade, tinha o seu lado cultural e desportivo que ainda hoje se reflecte no clube de Oderf. Jovens talentosos na arte de desenhar como Mário Cabral, Zé Paulo, Nuca e Duarte de nha Marintuinha; na música, havia os «Voz Beach», um grupo musical de instrumentos exóticos com os tambores da bateria feitos de lata e forrados de plástico, guitarras de pau com linhas de pesca e clarinetes fabricados com tubos de electricidade e casas de aranha onde arrancavam melodiosas sonoridades. Dos «músicos», retenho o nome de Jorge de nhô Quim e Quim de Joana Tatana. Outros artistas engenhosos como Aníbal de nhô Gabriel, Nunune e Roberto faziam carros de arame que eram perfeitas obras de arte. No futebol, entre pequenos e graúdos, destacavam-se nomes de craques como Gutinha, Humberto, Djodjim, Gute e Djoi Rocha. Certamente que omiti alguns nomes por esquecimento mas creio que todos nós nos identificamos com a história da Ribeira Funda.
A nossa infância foi vivida em alta velocidade. De manhã, tínhamos pressa nos afazeres de casa ou que a sineta do Externato desse o seu último suspiro para nos «libertar» ao que mais gostávamos que era jogar: jogar «matas» no largo da Escola de Nhô Padre, jogar futebol nos vários campos que circundavam a Ribeira Funda, jogar Tchintchom ou uril na Pracinha de Quebrode, fazer acrobacias em qualquer monte de areia da vizinhança, jogar tacada… enfim, a nossa ribeira era um parque de diversão.
A recreação prolongava-se até à noite nas cantigas de roda à frente da loja de Chia, ou brincando de «mãos-ao-ar» à espera do grito dos adultos chamando-nos para a casa. Ainda havia tempo para ouvir uma história sobre bruxas e «canelinhas». Parafraseando a velha canção do Gilberto, «Ribeira Funda deu-me régua e compasso // e o meu caminho pelo mundo eu mesmo traço».
Hoje, cada um tem a sua vida. Alguns amigos de infância não passam de meros «desconhecidos». Não sei se nós nos afastámos uns dos outros ou se foi o tempo que nos afastou; crescemos e cada um percorreu o seu destino; alguns por razões profissionais, outros por razões políticas, mas creio que haverá sempre um ponto de encontro na nossa história: a pequena aldeia da Ribeira Funda!
Evel Rocha
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quarta-feira, 15 de junho de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XX) – SERÁ O PROJECTO DO ENSINO SUPERIOR NO SAL UMA UTOPIA?

O Fórum Que Ensino superior Para o Sal foi marcado por dois momentos: primeiro, a declaração, nas entrelinhas, da ministra da Juventude que a população deverá preocupar-se mais com acções de «capacitação dos recursos humanos» num claro apelo à formação profissionalizante e, segundo, a apresentação dos resultados de um estudo onde o apresentador diz que em 311 inquiridos na ilha, apenas um se interessa por uma formação na área de turismo.
É legítimo a reivindicação da população. O sonho de qualquer estudante é ter um curso superior, o desejo de qualquer profissional é a sua auto-realização. Na visão de Maslow, cada indivíduo é munido da vocação inata à auto-realização (Maslow, 1970). Essa vocação, o topo da pirâmide, compreende o uso activo de todas as qualidades e habilidades, além do desenvolvimento e da aplicação plena da capacidade individual.
No espaço de pouco mais de um ano, foram realizados três fóruns e mais três palestras sobre o ensino superior e todos se convergiram ao mesmo resultado: a Ilha do Sal tem todas as condições para tal. Quanto ao estudo realizado pela Afrosondagem, a amostragem não é representativa da população tendo em conta a conveniência da mesma e o apresentador teve o cuidado de chamar a atenção para as limitações do trabalho que de modo nenhum deverá substituir a necessidade de um estudo de viabilidade com bases cientificas. As informações da RTC e os comentários nos sites online demonstram a ligeireza da comunicação social no tratamento deste estudo querendo de uma forma intencional legitimar os argumentos daqueles que acham que a ilha não tem condições para o ensino superior.


A Ilha vive um momento crucial na sua trajectória. O desenvolvimento deve ser medido, acima de tudo, do ponto de vista HUMANO e a presença do ensino superior representaria a alavanca capaz de marcar a diferença. A CRIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO SAL NÃO IMPLICA NECESSARIAMENTE A PRESENÇA DE UMA UNIVERSIDADE. É mais fácil a implementação de pólos universitários ou de um instituto politécnico com um projecto de desenvolvimento académico e científico, investindo no conhecimento, na criação do saber, nas competências que qualificam a sociedade civil e na inovação, mas acima de tudo com uma visão direccionada ao empreendedorismo. A estratégia da sua implementação deverá ter em conta que é necessário oferecer à população estudantil um ensino diferenciado àquilo que o mercado nacional vem oferecendo, apostando num ensino especializado, rompendo com a ortodoxia existente, pensar em termos de cooperação com outras escolas superiores já existentes e com as necessidades do mercado local – tendo o turismo como o principal foco de estudo.



A iniciativa dos salenses esteve sempre à frente das estratégias e da visão política dos sucessivos governos. Foi assim com a criação do liceu (antigo Externato), aconteceu com o aparecimento das indústrias salineira e turística e há de ser sempre assim enquanto continuarmos a registar a falta de visão, de estratégia e de vontade política. A última grande machadada no orgulho salense é sem dúvida a não construção da Escola de Hotelaria e Turismo. Tudo indica que brevemente teremos a primeira leva dos formandos no mercado de trabalho e nenhum deles pertence à ilha salineira. De certeza que estarão no Sal procurando o seu primeiro emprego.
Evel Rocha
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terça-feira, 24 de maio de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XIX) – O TURISMO E O DESENVOLVIMENTO HUMANO


O turismo na ilha do Sal atingiu o seu ponto de maturação relativamente às outras ilhas. A cintura balneária do sul da ilha ornamentada de resorts e hotéis de luxo, a cidade de Santa Maria com a sua diversidade de restaurantes e lojas, a modernização do aeroporto internacional e outras tantas infra-estruturas não foram acompanhadas com um forte investimento nas pessoas. É urgente um pólo da Escola de Turismo no Sal! Esta escola, do meu ponto de vista, deveria centrar-se na capacitação dos recursos humanos num primeiro momento de modo a garantir a qualidade dos serviços prestados. De entre outras atribuições, segundo Luiz Renato Ignarra (Fundamentos do turismo, 2000) através desta instituição, o Estado de Cabo Verde, estaria garantindo:
- controlo do uso e da conservação do património turístico;
- prestação de serviços de segurança pública;
- desenvolvimento de campanhas de conscientização turística;
- apoio ao desenvolvimento das actividades culturais locais, tais como artesanato, música, folclore, gastronomia típica, desportos náuticos, etc;
- apoio na melhoria e qualidade de vida das populações afectas ao turismo.
Num outro artigo, defendo que uma parte das receitas turísticas (pelo menos 50% das receitas) devem ser canalizadas para melhorar as condições de vida da população de modo a atenuar o impacto do turismo na mudança de vida dos mesmos, na mudança paisagística, na erosão, no sub-emprego, nos loteamentos que violentam o ambiente e na aglomeração do lixo.

Sem dúvida que temos das mais lindas praias do mundo, temos do melhor em matéria de clima, paisagens deslumbrantes mas o nosso maior património é e será sempre as pessoas. Fala-se em preservar as espécies endémicas, em proteger os animais em extinção (que ao longo dos séculos serviram de sustento para muitos cabo-verdianos) e esquece-se da vulnerabilidade duma boa parte da população. Deve-se continuar a apostar na preservação do ambiente mas também criar alternativas àqueles que ao longo da vida dependem dele. Há que reverter a situação ou então viveremos em constante ameaça; daí a necessidade de uma estratégia de desenvolvimento virada para as pessoas de modo que haja um melhor equilíbrio e sentido de justiça.

O desenvolvimento turístico poderá constituir numa agressão aos nativos se estes não virem as suas vidas melhoradas e se sentirem excluídas deste «pacote» de desenvolvimento que se quer. Deve-se evitar a todo custo o estado de assistencialismo instalado e dotar as pessoas de recursos capazes de fazer com eles próprios sejam os autores da sua própria transformação (auto-poiésis) e possam sentir como parte integrante do desenvolvimento sustentável que se quer em torno do turismo. Assim o desenvolvimento turístico deixaria de ser apenas responsabilidade do estado como promotor e os operadores turísticos como os concretizadores, passando a população a fazer parte deste desenvolvimento sustentável na sua dimensão social, afastando de vez a visão fatalista do assistencialismo.
As pessoas são a peça mais importante no complexo desenvolvimento destas ilhas e Sal deverá despontar como um exemplo à semelhança daquilo que acontece com a economia local.

Evel Rocha
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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aguarela salense



Aguarela salense

Do sol repenicado
planície amarinhada de suor
sal da terra puída
miragem lunar das eiras nuas
sal que retempera alma

maresia perfumada
grinaldas de ondas em volley
praias douradas E polidas
pontão de colunas seculares
salinas de cristais E sois hexagonais
farol adormecido
terra boa desvairando chuva
murdeira desenhando o sol desnudado
pardais que flauteiam o paraíso
salmoura vulcânica
porto na folhagem da palmeira
pedra de fogo mourejando o feijoal
palha verde ressequida
morro leste, morrinho de açúcar
filhos do monte grande da fiúra agitada
que madama a minha pele parda
espargo de quânticas avenidas
nervura das folhas do meu tronco
praias de versos dourados
cidade da virgem padecente
cerne de línguas irmanadas

não canso de contemplar teu horizonte
vestido com o mais lindo por-do-sol



terça-feira, 3 de maio de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XVIII) – MANUEL ANTÓNIO MARTINS, UMA FIGURA ESQUECIDA




A história é émula do tempo, repositório dos factos,
testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro.
Miguel Cervantes, in "Dom Quixote"

Dos comentários publicados em cada artigo que escrevo, quero destacar os desabafos carregados de mágoa e frustração de alguns salineiros que se sentem ultrajados pela forma como a história da ilha vem sendo esquecida e apagada em nome da prosperidade. A Cidade de Santa Maria, o símbolo da identidade salense, e Pedra de Lume, o berço da ilha, são as que mais têm sofrido com isso. Gostaria de me centrar um pouco na história do senhor Conselheiro Manuel António Martins (MAM), a figura de proa destas ilhas e, em particular da ilha do Sal, fundador das duas localidades anteriormente citadas. Segundo rezam as crónicas do século passado, este aventureiro, ao desembarcar na planície do centro-leste da ilha (Pedra de Lume), deslumbrado com a beleza e potencialidades do lago salgado, resolveu explorar aquilo que lhe pareceu uma fonte de riqueza na altura. Surge, então, em Cabo Verde e, quiçá, em todo o domínio português, o PRIMEIRO TÚNEL (1804-1808) que até hoje continua firmemente intacto. Em Santa Maria (1837), este mesmo senhor teve a proeza de construir a PRIMEIRA LINHA-FÉRREA, dezanove anos antes do império português e da África (Enciclopédia Britânica)! Há muitas histórias por contar sobre as condições de vida que se vivia na época. Vieira Botelho da Costa em “A Ilha do Sal de Cabo Verde” (Boletim da Sociedade de Geografia nº 11 de 1882), desperta a nossa imaginação ao descrever o percurso salineiro desde a sua extracção até ao embarque. Antes, tudo era transportado em balaios pelas mulheres que tinham que lutar contra o sol escaldante e a estrada arenosa, contra as lestadas e os resmungos dos capatazes. As vagonetas, quando não havia vento de feição, eram puxadas por mulas. Nhô Ivo Nunes, no seu jeito descontraído, conta que cometeu a proeza de estar envolvido no primeiro «acidente de viação» da ilha no momento em que conduzia uma vagoneta que vinha em «alta velocidade», acabando por bater num automóvel que atravessava a linha férrea – até nisso somos pioneiros! Já agora, puxando do meu orgulho salense, devo relembrar que o PRIMEIRO TELEFÉRICO também foi construído neste chão salgado.
Manuel António Martins precisa ser relembrado mais vezes e o seu nome deverá estar intimamente ligado à história desta ilha e, em particular à bela cidade de Santa Maria. Homem de visão, empreendedor por excelência, político arguto, a sua vida foi entremeada de altos e baixos: da alta esfera social passou a prisioneiro, de herói (empresário de sucesso) passou a perseguido pela lei, para nos últimos anos da sua vida ser reconhecido como Conselheiro do Rei.
Não podemos escamotear a história por mais adversa que ela seja e, em nome da verdade, o nome do senhor MAM precisa constar do roteiro turístico com marcos históricos que invocam as suas realizações. Em 2014 estaremos celebrando os 240 anos do nascimento desta figura emblemática não só do Sal mas de todo o Cabo Verde. Proponho que o ano seja dedicado ao Conselheiro Manuel António Martins e que as actividades sejam centradas na Cidade de Santa Maria onde ainda (até quando?) existe a casa em que ele viveu os melhores anos da sua vida e o túmulo onde repousam os seus ossos.

Evel Rocha
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quinta-feira, 28 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XVII) – PARA QUANDO O RECONHECIMENTO DAS SALINAS DE PL COMO PATRIMÓNIO MUNDIAL?





As salinas de Pedra de Lume sobressaem no arquipélago como o maior e mais espectacular sítio de Cabo Verde. É o lugar mais conhecido e mencionado nos roteiros turísticos, a par da praia de Santa Maria. A 39,6 metros de altura acima do nível do mar, a cratera do vulcão era um imenso lago de água salgada. A data oficial do seu nascimento é de 1805 mas, segundo narram algumas crónicas, a exploração começou com a vinda de alguns escravos para a ilha, em 1799. Aos poucos, a cratera foi ganhando a configuração de um tabuleiro quadriculado, proporcionando aos visitantes um espectáculo único em todo o mundo. Pedra de Lume deve o seu nome às pederneiras que, quando golpeadas com um pedaço de aço, produzem lume.
No terceiro quartel do século passado, ainda as salinas tinham vida; ainda o teleférico transportava o sal para a refinaria onde era ensacado e armazenado; ainda o porto António Manuel Martins, a figura maior da ilha, aportava as grandes lanchas que recebiam o sal para os navios ancorados ao mar largo; ainda a festa de Nossa Senhora de Piedade atraía as gentes dos quatro povoados; ainda as salinas guardavam o seu esplendor, os cristais de sal hipnotizavam os viandantes que guardavam na memória o momento sublime em que visitavam um dos lugares mais lindos da terra!

Há quem defenda que se deveria transformar as salinas num centro de talassoterapia (cura pela água do mar); se isso acontecer, será um duro golpe ao maior monumento histórico destas ilhas; estaríamos consentindo que uma parte da nossa história fosse engolida pela ganância económica. O Estado de Cabo Verde deve assumir a sua responsabilidade na preservação do local de modo a garantir a qualidade e a preservação da condição natural deste bem maior que Deus nos concedeu. Devem os salineiros de coração assumir o seu papel de defensores da sua história e do seu espaço, fazer que a sua voz seja ouvida quando o futuro ou os seus interesses estão em jogo – há que cultivar mais a consciência salense, lembrando sempre que a protecção do património cultural ou natural, como é o caso, constitui uma obrigação moral, permitindo-lhe reconhecer as suas raízes culturais e sociais. Mas também é uma responsabilidade pública colectiva. Esta responsabilidade deve traduzir-se na adopção de legislação adequada e na busca de meios para a sua preservação. Penso que, pela importância das Salinas de Pedra de Lume, não será tão difícil de encontrar, por intermédio da UNESCO, financiamento para a requalificação ou reconstituição dum monumento da dimensão das salinas. Vulcões e cidades há muitos por este mundo fora mas paisagem natural como as salinas de Pedra de Lume só existe uma e ela está situada no nosso arquipélago. As salinas de Pedra de Lume ressaem como um património único pela sua beleza e configuração mas acima de tudo porque congrega os variados tipos de patrimónios existentes:
(1) um património natural – apesar das transformações sofridas ao longo dos últimos séculos, conserva os traços naturais de um vulcão extinto que o diferencia dos demais;
(2) um património edificado – o túnel de acesso, as lanchas, o cais, as casas, os resquícios das máquinas e teleférico, apesar da crueldade do tempo e dos homens, ainda estão lá para testemunharem o passado;
(3) um património cultural – ali se concretiza o intercâmbio de valores humanos, uma obra prima natural, o maior ponto de atracção turística das ilhas;
Há mais de duas décadas que especialistas da UNESCO vêm afirmando que as salinas de Pedra de Lume, devido às suas características histórico-culturais, naturais e terapêuticas, têm fortes potencialidades de virem a ser consideradas Património da Humanidade, contudo, falta vontade política para concretização deste sonho. Não tenho nada contra que se desenterrem cidades em busca da identidade ou que se elejam prisões como património mundial mas sou contra que se privilegiem certos sítios em detrimento de outros que por natureza evidenciam melhores condições.


Evel Rocha
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sábado, 16 de abril de 2011


SALINEIROS DE CORAÇÃO (XVI) – DJA D`SAL, UM HINO DE LOUVOR

Alcides Spencer Brito nasceu numa família de músicos. Filho de Nhô Mané Eugénia, irmão de Nhelas e Magui Spencer, todos artistas de renome. O seu repertório conta com músicas como «No Ca Babosa», «Cena de Ciúmes», «Paródia Familiar» mas o mais popular de todos que, em tempos, se tornou o hino da revolução é sem dúvida «Levanta Broce bo Grita bo Liberdade». Tchinôa tem tido alguma visibilidade como homem da música a nível nacional mas penso que a nível local, já é tempo de reconhecer e atribuir-lhe o devido destaque que merece.
A música «Dja d`Sal» é uma declaração de amor do autor à ilha que o viu nascer e o mais belo desta obra-prima é que ela traduz o sentimento dos salineiros de coração: sem o verde do vale de Paúl, sem o adorno da Brava em flor, sem o encanto das noites de Mindelo, Sal consegue ser o mel apetecido, a ilha «idolatrada» por aqueles que a amam de verdade. A primeira estrofe do hino «Dja d`Sal» é uma declaração de amor e fidelidade, a máxima expressão de louvor daqueles que viram esta ilha a crescer.
A segunda estrofe traz à memória os dias em que a ilha acolhia os desterrados, escorraçados do seu ninho, pescadores das ilhas vizinhas e pastores, os dias em que aqueles que pisavam esse chão ressequido contavam os dias de regresso e lamentavam a má sorte. Porém, de «castigode» passou a ser gente «bem papiode»; agora quem vem quer a sua parcela e fincar as suas raízes. Sim, só quem experimentou viver longe da terra mãe compreenderá estes versos de como deixou o seu torrão natal mas o coração ficou nas lembranças dos dias vividos na ilha.
A terceira estrofe é um compromisso de amar e honrar a ilha como se se tratasse de uma donzela, a nossa Sinderella, e por ela, bateremos como heróis para que continue brilhando no firmamento azul das dez estrelas douradas que compõem a nossa bandeira.
Sal de Manuel António Martins, Sal de Jorge Barbosa, ilha mágica da salina vulcânica, do areal puro de Santa Maria, das farras e tocatinas, das gentes vindas do mundo inteiro, babel de línguas, Sal da poesia e do trabalho… é esse o mundo mágico cantado por Tchinôa e todos nós fazemos parte deste coral de alegria e de prazer; é esse o mundo visualizado por Tchinoa, é isso que nos faz sonhar e nos orgulha de ser salense! Nunca é tarde demais para reconhecer o bem que os outros fizeram, por isso, aqui deixo a minha sincera homenagem ao senhor Alcides Spencer Brito.
Imaginem a música cantada um pouco mais lento por um coral, por exemplo, os alunos da Escola de Música Tututa dirigida pela professora Sadia Diouf. Não tenho dúvidas que esta obra-prima encaixa na perfeição no espírito e na alma salense. A simplicidade da letra e a riqueza melódica espelha o orgulho daqueles que se identificam como salineiros de coração. Esta música deveria ser decretada o hino da ilha do Sal, a pedra basilar na construção da consciência salense.


DJA D`SAL
Letra e Música de Alcídes Spencer Brito (Tchinoa)
D`xome na nha munde piquininin
D`xome na Dja Sal, Terra salgode
É um salgadura
Que tem doçura
Dia c´m dxa`l
É q`amargura

Ó Dja d`Sal
Onte bô foi terra d`gente
Castigode
Hoje bô é terra d`gente
Bem papiôde
Quem bem na bô
Ca ta largobe

Ta doeme ovi
Ta fla mal de bô
Ma f`ture de nôs tud
Ta na bô mon
D`agua azulin, oh q`sabura…!
É nôs esperança
Num f`tur d`bonança

Dja d`Sal
Nha ilha
Dja d`Sal
Nha Terra
Quem bem na bô
Ca ta largôbe



Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/

terça-feira, 12 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XV) – NHÔ IVO, UM CANTADOR À MODA ANTIGA


Conheci o senhor Ivo quando eu era criança nos famosos passeios escolares ao Algodoeiro. Ainda o pequeno vale, escondido atrás da árida planície de Fátima, guardava os resquícios dos anos de esplendor em que se despontava como o celeiro da ilha do Sal. Custa acreditar mas Algodoeiro já foi lugar de verdura, batata, mandioca, manga, hortaliças e sobretudo de tâmaras em cachos da melhor qualidade.
No seu falar doce e afável de uma ingenuidade emotiva, nhô Ivo, um salineiro de coração, poeta do povo, cantador apaixonado de serenatas e das noites cabo-verdianas, é sem dúvida uma referência incontornável na história de Santa Maria e do Algodoeiro em particular. Homem de baixa estatura mas com um coração grande! Conhecido por todos pelo seu trabalho ligado à saúde mas o que lhe distingue dos outros é a sua veia artística e repentista na sua forma como joga com as palavras e adoça a vida dos outros com as suas historias intermináveis.


Há bem poucos dias, tive o privilégio de passar um fim de tarde com ele e o seu violão. Cada música tinha uma história. Histórias de desafectos, de amores, de saudade e até mesmo de luto. Enquanto falava ou dedilhava as suas próprias composições, eu perdia-me em conjecturas só de pensar em tantos salenses, testemunhas vivas, construtores desta ilha querida que se silenciaram e com eles levaram tantas histórias lindas para a eternidade!
As suas melodias são simples e graciosas. A sua voz campesina e agastada pela maresia por vezes se desprende como o rumor das praias de Algodoeiro. Quando nhô Ivo canta a coladeira da sua autoria «Ó nha Bitinha», música popularizada por Bana, dificilmente se consegue deixar de rir: apesar da idade octogenária, no seu jeito jovial, faz-nos reviver essa sátira. Cada música termina com uma gargalhada.
Nhô Ivo conta que a «as noites eram mágicas quando se ouvia os tristes acordes de um violão. As serenatas eram realizadas debaixo de uma janela ao luar e quase sempre para despertar o coração de uma moça que se tornara motivo de paixão». A lua cheia era peça importante para enfeitar as noites de serenata daqueles que se madrugavam ao sabor da brisa e do som de um violão.
Hoje, com dificuldades em se deslocar, sempre que pode, encontra em Mateus Nunes um companheiro na faina musical cantando e entretendo aqueles que ainda se revêem na música tradicional.


Com este texto quero expressar a minha sincera homenagem a nhô Ivo e a todos os cantores e tocadores de violão que animaram as noites salineiras como Antoninho Lobo, Taninho Évora, Agostinho Fortes, Manel de Eugénia, Ti Chôt e tantos outros. Alguns, como Djon de Perpétua, Cula, e também fazem parte desse universo de tocadores que eu cresci a ouvir tocar. A ideia de escrever essas recordações não é puro saudosismo mas é dar a conhecer o passado para escrever o futuro.


Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Alguém se lembra de Poço Verde? Localizado a caminho de Pedra de Lume, cerca de quatro quilómetros de Espargos, Poço Verde era o ponto de referência da ilha por ser o único poço de água que servia para beber, apesar do gosto salobro.

Com aproximadamente dezoito metros de profundidade, a água era bombeada por um moinho de vento que por sua vez a depositava num tanque onde o precioso líquido era vendido por um preço módico por barril. Apesar da distância e do sol obstinado, Poço Verde era um regalo para qualquer jovem e marcou a geração dos anos sessenta e setenta. O barril de água era um meio de transporte mas acima de tudo o brinquedo de sonho para qualquer jovem salense. A ilha, por ser muito árida, a escassez de água

era o principal problema; chegava-se a importar botijas de água das outras ilhas e, em tempos idos, os pilotos italianos da LATI traziam garrafões de água como encomenda para os que ficavam em terra. O barril chegou ao Sal pelas mãos dos militares portugueses, apreciadores do vinho; depois de vazios eram doados aos locais que, na sua argúcia de driblar o destino, transformavam-nos em meios de transporte de água; à volta do barril colocava-se duas cintas de pneus que serviam de rodas e uma tranca de madeira em cada base onde se encaixava o volante de ferro que servia para empurrar ou puxar à moda de TiCarlos.

Carregar água do Poço Verde era muito mais que um trabalho, era uma aventura festiva. Aquilo que a priori poderia ser considerado um trabalho árduo transformou-se em arte: às quatro de madrugada, ouvia-se o rolar dos barris e a vozearia da rapaziada que começava na Preguiça e terminava em Chã de Matias chamando uns pelos outros para a grande concentração. A terra puída e solta levantava-se em algazarra pintando a atmosfera de um castanho cor de café-com-leite, enquanto os heróicos «velocistas», com os pés descalços, corriam esbaforidos os quilómetros de estrada num reboliço esfusiante. O objectivo era a louca corrida de barril para ver quem chegava primeiro. O prémio era a simples satisfação de chegar à frente e conquistar a admiração dos outros. Não é difícil imaginar o que ia na cabeça daqueles jovens demarcados pela pobreza que os rodeava mas conscientes de que a criatividade era e continua a ser uma exigência para superar as limitações.

O caminho de Poço Verde tinha encantos. Enquanto os mais velhos gladiavam-se com o barril, nós, os mais novos, pendíamos à descoberta de ninhos de pardal. Toi Ninha era a «sentinela» do poço; pequeno do tamanho de uma tampinha mas com o coração grande. Entre resmungos e lamentos acabava sempre por consentir que a malandragem tomasse banho de graça.

Havia exímios barrilistas: acrobatas que faziam piruetas e malabares sobre o barril em movimento, transformando o trabalho árduo em pura diversão. Entre muitos, está o Quim de Jona Tatana que fazia pino e dava saltos-mortais enquanto conduzia o seu brinquedo.

Não tendo os recursos que nós temos hoje, os jovens da era do Poço Verde souberam tirar proveito da sua criatividade e superar as limitações. Precisamos regressar às nossas origens e não deixar que outros pensem por nós. Sejamos o designer da nossa própria existência!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO XII - A REALIDADE SOCIAL




Há quem diga que Cabo Verde sempre viveu em crise por ser um país que pouco produz e vive de ajudas internacionais.

Gastamos mais do que aquilo que produzimos, a nossa exportação é demasiadamente baixa em relação ao que importamos. Não tenho dúvidas que a ilha do Sal é a principal vítima desta famigerada crise sem precedentes. Essa crise económica que vem levando os jovens ao desemprego e o aumento das desigualdades sociais, leva-nos a acreditar que estamos afundando numa crise social sem precedentes.

O encerramento de alguns hotéis e restaurantes, a paralisação sine die de uma boa parte das construções ligadas à infra-estruturação turística nos alertam a uma rápida intervenção que deveria ter iniciado em 2007.

O desemprego está a atingir os limites do tolerável. Há que ter em conta que a maior parte dos jovens que vem de outras ilhas, com o agravante da desenfreada imigração de mão-de-obra barata da costa ocidental africana, ocupa os chamados empregos precários e mal remunerados. A situação é mesmo dramática. Ao visitarmos os bairros de Espargos e Santa Maria, passando por Pedra de Lume e Palmeira, sem querer assacar responsabilidade a ninguém, não podemos ficar indiferentes aos rostos carregados de desalento, chefes de família de braços cruzados expectantes ao que poderá acontecer no dia seguinte.

As estatísticas não falam dessa pobreza que está aos olhos de todos, não contabilizam o crescimento de barracas que se multiplicam pelas faldas de Alto São João, Terra Boa, Salina, Vila Verde e Fátima. Por falta de dinheiro para pagar renda numa habitação condigna, jovens vindos de outras ilhas acotovelam-se em moradias superlotadas com todas as consequências que advêm desta situação; adolescentes aventuram-se em relacionamentos amorosos de uma forma inusitada; este estado de coisas, cada vez mais, aumenta a apetência para o lucro fácil que, por sua vez, se resvala para comportamentos desviantes conduzindo-nos a uma inevitável crise moral.



A ilha do Sal está dividida em dois mundos: o mundo daqueles que têm uma vida estável, um emprego de remuneração satisfatória que garante uma estabilidade financeira e o mundo daqueles que sobrevivem como podem; o fosso social que separa estes dois mundos é cada vez mais abismal. As barracas são construídas em zonas onde as autoridades têm pouco controlo e falta quase tudo: não há condições sanitárias e as necessidades básicas para a sobrevivência são praticamente nulas. Em termos estéticos, temos o decrépito cenário de construções onde a cor de ferrugem das barracas pontilham as chãs de terra escalavrada e, no litoral, o cenário de exuberância e luxo dos hotéis que embelezam a cintura dourada das praias animadas de turistas que desconhecem a outra face da ilha habitada ironicamente por alguns empregados que lhes servem no dia-a-dia.

É tempo de agir rapidamente antes que seja tarde demais. Não estamos a referir ao apoio do governo, a panaceia dos problemas imediatos, mas agir de modo a preparar o futuro, atacando os problemas de frente e salvar o que ainda é possível. A crise, em qualquer circunstância deve ser encarada como uma oportunidade para a mudança; deve-se aproveitar desta crise para redesenhar a política que se quer para o turismo na ilha do Sal mas tendo sempre em conta o sistema de protecção social – uma política económica que tenha sempre em primeiro lugar os trabalhadores, os locais.

Esperamos um forte investimento público na Ilha do Sal como forma de atenuar esta crise social com empregos e mais incentivos para negócios start up e auto-emprego.



Evel Rocha / liberal.sapo.cv