quinta-feira, 28 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XVII) – PARA QUANDO O RECONHECIMENTO DAS SALINAS DE PL COMO PATRIMÓNIO MUNDIAL?





As salinas de Pedra de Lume sobressaem no arquipélago como o maior e mais espectacular sítio de Cabo Verde. É o lugar mais conhecido e mencionado nos roteiros turísticos, a par da praia de Santa Maria. A 39,6 metros de altura acima do nível do mar, a cratera do vulcão era um imenso lago de água salgada. A data oficial do seu nascimento é de 1805 mas, segundo narram algumas crónicas, a exploração começou com a vinda de alguns escravos para a ilha, em 1799. Aos poucos, a cratera foi ganhando a configuração de um tabuleiro quadriculado, proporcionando aos visitantes um espectáculo único em todo o mundo. Pedra de Lume deve o seu nome às pederneiras que, quando golpeadas com um pedaço de aço, produzem lume.
No terceiro quartel do século passado, ainda as salinas tinham vida; ainda o teleférico transportava o sal para a refinaria onde era ensacado e armazenado; ainda o porto António Manuel Martins, a figura maior da ilha, aportava as grandes lanchas que recebiam o sal para os navios ancorados ao mar largo; ainda a festa de Nossa Senhora de Piedade atraía as gentes dos quatro povoados; ainda as salinas guardavam o seu esplendor, os cristais de sal hipnotizavam os viandantes que guardavam na memória o momento sublime em que visitavam um dos lugares mais lindos da terra!

Há quem defenda que se deveria transformar as salinas num centro de talassoterapia (cura pela água do mar); se isso acontecer, será um duro golpe ao maior monumento histórico destas ilhas; estaríamos consentindo que uma parte da nossa história fosse engolida pela ganância económica. O Estado de Cabo Verde deve assumir a sua responsabilidade na preservação do local de modo a garantir a qualidade e a preservação da condição natural deste bem maior que Deus nos concedeu. Devem os salineiros de coração assumir o seu papel de defensores da sua história e do seu espaço, fazer que a sua voz seja ouvida quando o futuro ou os seus interesses estão em jogo – há que cultivar mais a consciência salense, lembrando sempre que a protecção do património cultural ou natural, como é o caso, constitui uma obrigação moral, permitindo-lhe reconhecer as suas raízes culturais e sociais. Mas também é uma responsabilidade pública colectiva. Esta responsabilidade deve traduzir-se na adopção de legislação adequada e na busca de meios para a sua preservação. Penso que, pela importância das Salinas de Pedra de Lume, não será tão difícil de encontrar, por intermédio da UNESCO, financiamento para a requalificação ou reconstituição dum monumento da dimensão das salinas. Vulcões e cidades há muitos por este mundo fora mas paisagem natural como as salinas de Pedra de Lume só existe uma e ela está situada no nosso arquipélago. As salinas de Pedra de Lume ressaem como um património único pela sua beleza e configuração mas acima de tudo porque congrega os variados tipos de patrimónios existentes:
(1) um património natural – apesar das transformações sofridas ao longo dos últimos séculos, conserva os traços naturais de um vulcão extinto que o diferencia dos demais;
(2) um património edificado – o túnel de acesso, as lanchas, o cais, as casas, os resquícios das máquinas e teleférico, apesar da crueldade do tempo e dos homens, ainda estão lá para testemunharem o passado;
(3) um património cultural – ali se concretiza o intercâmbio de valores humanos, uma obra prima natural, o maior ponto de atracção turística das ilhas;
Há mais de duas décadas que especialistas da UNESCO vêm afirmando que as salinas de Pedra de Lume, devido às suas características histórico-culturais, naturais e terapêuticas, têm fortes potencialidades de virem a ser consideradas Património da Humanidade, contudo, falta vontade política para concretização deste sonho. Não tenho nada contra que se desenterrem cidades em busca da identidade ou que se elejam prisões como património mundial mas sou contra que se privilegiem certos sítios em detrimento de outros que por natureza evidenciam melhores condições.


Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/




sábado, 16 de abril de 2011


SALINEIROS DE CORAÇÃO (XVI) – DJA D`SAL, UM HINO DE LOUVOR

Alcides Spencer Brito nasceu numa família de músicos. Filho de Nhô Mané Eugénia, irmão de Nhelas e Magui Spencer, todos artistas de renome. O seu repertório conta com músicas como «No Ca Babosa», «Cena de Ciúmes», «Paródia Familiar» mas o mais popular de todos que, em tempos, se tornou o hino da revolução é sem dúvida «Levanta Broce bo Grita bo Liberdade». Tchinôa tem tido alguma visibilidade como homem da música a nível nacional mas penso que a nível local, já é tempo de reconhecer e atribuir-lhe o devido destaque que merece.
A música «Dja d`Sal» é uma declaração de amor do autor à ilha que o viu nascer e o mais belo desta obra-prima é que ela traduz o sentimento dos salineiros de coração: sem o verde do vale de Paúl, sem o adorno da Brava em flor, sem o encanto das noites de Mindelo, Sal consegue ser o mel apetecido, a ilha «idolatrada» por aqueles que a amam de verdade. A primeira estrofe do hino «Dja d`Sal» é uma declaração de amor e fidelidade, a máxima expressão de louvor daqueles que viram esta ilha a crescer.
A segunda estrofe traz à memória os dias em que a ilha acolhia os desterrados, escorraçados do seu ninho, pescadores das ilhas vizinhas e pastores, os dias em que aqueles que pisavam esse chão ressequido contavam os dias de regresso e lamentavam a má sorte. Porém, de «castigode» passou a ser gente «bem papiode»; agora quem vem quer a sua parcela e fincar as suas raízes. Sim, só quem experimentou viver longe da terra mãe compreenderá estes versos de como deixou o seu torrão natal mas o coração ficou nas lembranças dos dias vividos na ilha.
A terceira estrofe é um compromisso de amar e honrar a ilha como se se tratasse de uma donzela, a nossa Sinderella, e por ela, bateremos como heróis para que continue brilhando no firmamento azul das dez estrelas douradas que compõem a nossa bandeira.
Sal de Manuel António Martins, Sal de Jorge Barbosa, ilha mágica da salina vulcânica, do areal puro de Santa Maria, das farras e tocatinas, das gentes vindas do mundo inteiro, babel de línguas, Sal da poesia e do trabalho… é esse o mundo mágico cantado por Tchinôa e todos nós fazemos parte deste coral de alegria e de prazer; é esse o mundo visualizado por Tchinoa, é isso que nos faz sonhar e nos orgulha de ser salense! Nunca é tarde demais para reconhecer o bem que os outros fizeram, por isso, aqui deixo a minha sincera homenagem ao senhor Alcides Spencer Brito.
Imaginem a música cantada um pouco mais lento por um coral, por exemplo, os alunos da Escola de Música Tututa dirigida pela professora Sadia Diouf. Não tenho dúvidas que esta obra-prima encaixa na perfeição no espírito e na alma salense. A simplicidade da letra e a riqueza melódica espelha o orgulho daqueles que se identificam como salineiros de coração. Esta música deveria ser decretada o hino da ilha do Sal, a pedra basilar na construção da consciência salense.


DJA D`SAL
Letra e Música de Alcídes Spencer Brito (Tchinoa)
D`xome na nha munde piquininin
D`xome na Dja Sal, Terra salgode
É um salgadura
Que tem doçura
Dia c´m dxa`l
É q`amargura

Ó Dja d`Sal
Onte bô foi terra d`gente
Castigode
Hoje bô é terra d`gente
Bem papiôde
Quem bem na bô
Ca ta largobe

Ta doeme ovi
Ta fla mal de bô
Ma f`ture de nôs tud
Ta na bô mon
D`agua azulin, oh q`sabura…!
É nôs esperança
Num f`tur d`bonança

Dja d`Sal
Nha ilha
Dja d`Sal
Nha Terra
Quem bem na bô
Ca ta largôbe



Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/

terça-feira, 12 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO (XV) – NHÔ IVO, UM CANTADOR À MODA ANTIGA


Conheci o senhor Ivo quando eu era criança nos famosos passeios escolares ao Algodoeiro. Ainda o pequeno vale, escondido atrás da árida planície de Fátima, guardava os resquícios dos anos de esplendor em que se despontava como o celeiro da ilha do Sal. Custa acreditar mas Algodoeiro já foi lugar de verdura, batata, mandioca, manga, hortaliças e sobretudo de tâmaras em cachos da melhor qualidade.
No seu falar doce e afável de uma ingenuidade emotiva, nhô Ivo, um salineiro de coração, poeta do povo, cantador apaixonado de serenatas e das noites cabo-verdianas, é sem dúvida uma referência incontornável na história de Santa Maria e do Algodoeiro em particular. Homem de baixa estatura mas com um coração grande! Conhecido por todos pelo seu trabalho ligado à saúde mas o que lhe distingue dos outros é a sua veia artística e repentista na sua forma como joga com as palavras e adoça a vida dos outros com as suas historias intermináveis.


Há bem poucos dias, tive o privilégio de passar um fim de tarde com ele e o seu violão. Cada música tinha uma história. Histórias de desafectos, de amores, de saudade e até mesmo de luto. Enquanto falava ou dedilhava as suas próprias composições, eu perdia-me em conjecturas só de pensar em tantos salenses, testemunhas vivas, construtores desta ilha querida que se silenciaram e com eles levaram tantas histórias lindas para a eternidade!
As suas melodias são simples e graciosas. A sua voz campesina e agastada pela maresia por vezes se desprende como o rumor das praias de Algodoeiro. Quando nhô Ivo canta a coladeira da sua autoria «Ó nha Bitinha», música popularizada por Bana, dificilmente se consegue deixar de rir: apesar da idade octogenária, no seu jeito jovial, faz-nos reviver essa sátira. Cada música termina com uma gargalhada.
Nhô Ivo conta que a «as noites eram mágicas quando se ouvia os tristes acordes de um violão. As serenatas eram realizadas debaixo de uma janela ao luar e quase sempre para despertar o coração de uma moça que se tornara motivo de paixão». A lua cheia era peça importante para enfeitar as noites de serenata daqueles que se madrugavam ao sabor da brisa e do som de um violão.
Hoje, com dificuldades em se deslocar, sempre que pode, encontra em Mateus Nunes um companheiro na faina musical cantando e entretendo aqueles que ainda se revêem na música tradicional.


Com este texto quero expressar a minha sincera homenagem a nhô Ivo e a todos os cantores e tocadores de violão que animaram as noites salineiras como Antoninho Lobo, Taninho Évora, Agostinho Fortes, Manel de Eugénia, Ti Chôt e tantos outros. Alguns, como Djon de Perpétua, Cula, e também fazem parte desse universo de tocadores que eu cresci a ouvir tocar. A ideia de escrever essas recordações não é puro saudosismo mas é dar a conhecer o passado para escrever o futuro.


Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Alguém se lembra de Poço Verde? Localizado a caminho de Pedra de Lume, cerca de quatro quilómetros de Espargos, Poço Verde era o ponto de referência da ilha por ser o único poço de água que servia para beber, apesar do gosto salobro.

Com aproximadamente dezoito metros de profundidade, a água era bombeada por um moinho de vento que por sua vez a depositava num tanque onde o precioso líquido era vendido por um preço módico por barril. Apesar da distância e do sol obstinado, Poço Verde era um regalo para qualquer jovem e marcou a geração dos anos sessenta e setenta. O barril de água era um meio de transporte mas acima de tudo o brinquedo de sonho para qualquer jovem salense. A ilha, por ser muito árida, a escassez de água

era o principal problema; chegava-se a importar botijas de água das outras ilhas e, em tempos idos, os pilotos italianos da LATI traziam garrafões de água como encomenda para os que ficavam em terra. O barril chegou ao Sal pelas mãos dos militares portugueses, apreciadores do vinho; depois de vazios eram doados aos locais que, na sua argúcia de driblar o destino, transformavam-nos em meios de transporte de água; à volta do barril colocava-se duas cintas de pneus que serviam de rodas e uma tranca de madeira em cada base onde se encaixava o volante de ferro que servia para empurrar ou puxar à moda de TiCarlos.

Carregar água do Poço Verde era muito mais que um trabalho, era uma aventura festiva. Aquilo que a priori poderia ser considerado um trabalho árduo transformou-se em arte: às quatro de madrugada, ouvia-se o rolar dos barris e a vozearia da rapaziada que começava na Preguiça e terminava em Chã de Matias chamando uns pelos outros para a grande concentração. A terra puída e solta levantava-se em algazarra pintando a atmosfera de um castanho cor de café-com-leite, enquanto os heróicos «velocistas», com os pés descalços, corriam esbaforidos os quilómetros de estrada num reboliço esfusiante. O objectivo era a louca corrida de barril para ver quem chegava primeiro. O prémio era a simples satisfação de chegar à frente e conquistar a admiração dos outros. Não é difícil imaginar o que ia na cabeça daqueles jovens demarcados pela pobreza que os rodeava mas conscientes de que a criatividade era e continua a ser uma exigência para superar as limitações.

O caminho de Poço Verde tinha encantos. Enquanto os mais velhos gladiavam-se com o barril, nós, os mais novos, pendíamos à descoberta de ninhos de pardal. Toi Ninha era a «sentinela» do poço; pequeno do tamanho de uma tampinha mas com o coração grande. Entre resmungos e lamentos acabava sempre por consentir que a malandragem tomasse banho de graça.

Havia exímios barrilistas: acrobatas que faziam piruetas e malabares sobre o barril em movimento, transformando o trabalho árduo em pura diversão. Entre muitos, está o Quim de Jona Tatana que fazia pino e dava saltos-mortais enquanto conduzia o seu brinquedo.

Não tendo os recursos que nós temos hoje, os jovens da era do Poço Verde souberam tirar proveito da sua criatividade e superar as limitações. Precisamos regressar às nossas origens e não deixar que outros pensem por nós. Sejamos o designer da nossa própria existência!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

SALINEIROS DE CORAÇÃO XII - A REALIDADE SOCIAL




Há quem diga que Cabo Verde sempre viveu em crise por ser um país que pouco produz e vive de ajudas internacionais.

Gastamos mais do que aquilo que produzimos, a nossa exportação é demasiadamente baixa em relação ao que importamos. Não tenho dúvidas que a ilha do Sal é a principal vítima desta famigerada crise sem precedentes. Essa crise económica que vem levando os jovens ao desemprego e o aumento das desigualdades sociais, leva-nos a acreditar que estamos afundando numa crise social sem precedentes.

O encerramento de alguns hotéis e restaurantes, a paralisação sine die de uma boa parte das construções ligadas à infra-estruturação turística nos alertam a uma rápida intervenção que deveria ter iniciado em 2007.

O desemprego está a atingir os limites do tolerável. Há que ter em conta que a maior parte dos jovens que vem de outras ilhas, com o agravante da desenfreada imigração de mão-de-obra barata da costa ocidental africana, ocupa os chamados empregos precários e mal remunerados. A situação é mesmo dramática. Ao visitarmos os bairros de Espargos e Santa Maria, passando por Pedra de Lume e Palmeira, sem querer assacar responsabilidade a ninguém, não podemos ficar indiferentes aos rostos carregados de desalento, chefes de família de braços cruzados expectantes ao que poderá acontecer no dia seguinte.

As estatísticas não falam dessa pobreza que está aos olhos de todos, não contabilizam o crescimento de barracas que se multiplicam pelas faldas de Alto São João, Terra Boa, Salina, Vila Verde e Fátima. Por falta de dinheiro para pagar renda numa habitação condigna, jovens vindos de outras ilhas acotovelam-se em moradias superlotadas com todas as consequências que advêm desta situação; adolescentes aventuram-se em relacionamentos amorosos de uma forma inusitada; este estado de coisas, cada vez mais, aumenta a apetência para o lucro fácil que, por sua vez, se resvala para comportamentos desviantes conduzindo-nos a uma inevitável crise moral.



A ilha do Sal está dividida em dois mundos: o mundo daqueles que têm uma vida estável, um emprego de remuneração satisfatória que garante uma estabilidade financeira e o mundo daqueles que sobrevivem como podem; o fosso social que separa estes dois mundos é cada vez mais abismal. As barracas são construídas em zonas onde as autoridades têm pouco controlo e falta quase tudo: não há condições sanitárias e as necessidades básicas para a sobrevivência são praticamente nulas. Em termos estéticos, temos o decrépito cenário de construções onde a cor de ferrugem das barracas pontilham as chãs de terra escalavrada e, no litoral, o cenário de exuberância e luxo dos hotéis que embelezam a cintura dourada das praias animadas de turistas que desconhecem a outra face da ilha habitada ironicamente por alguns empregados que lhes servem no dia-a-dia.

É tempo de agir rapidamente antes que seja tarde demais. Não estamos a referir ao apoio do governo, a panaceia dos problemas imediatos, mas agir de modo a preparar o futuro, atacando os problemas de frente e salvar o que ainda é possível. A crise, em qualquer circunstância deve ser encarada como uma oportunidade para a mudança; deve-se aproveitar desta crise para redesenhar a política que se quer para o turismo na ilha do Sal mas tendo sempre em conta o sistema de protecção social – uma política económica que tenha sempre em primeiro lugar os trabalhadores, os locais.

Esperamos um forte investimento público na Ilha do Sal como forma de atenuar esta crise social com empregos e mais incentivos para negócios start up e auto-emprego.



Evel Rocha / liberal.sapo.cv