Será difícil descrever aos moradores de hoje o que era a Ribeira funda do passado. As fotografias e os filmes nos mostram as casas, algumas cobertas de colmo, as ruas de terra batida, crianças que se posam para serem fotografadas, mas não captam a verdadeira vivência, a relação afectiva e o círculo íntimo de solidariedade. Era uma ribeira sem água, era um mundo de trabalho, de paisagens despidas de verde. Das poucas acácias, destacavam-se as duas árvores frondosas da casa de nhô Zé da Graça onde refugiávamos do sol abrasador depois das partidas de futebol atrás de casa de nha Tuda. Um ambiente de cheiros a fumo da lenha, a palha para a alimária, o ruído dos moedores e do pilão, a algazarra das crianças descalças correndo atrás da bola de meia; a rapaziada contando as aventuras do grogue e toucinho; histórias de vida narradas na loja de nha Joana d`Gualdino e de TiBeto; fofocas da vizinhança sob os olhares desconfiados de quem passa com o barril de água. Havia pessoas de todas as ilhas, cada um com seus hábitos e costumes, contudo, vivíamos como uma grande família. Ali morava TiCarlos, o humilde carregador de barris, uma figura incontornável da história salineira, Beto de Shell, um eterno desportista e, também, Zé Cabral, activista cultural que deu nome ao anfiteatro de Espargos.
Ribeira Funda, nos seus traços de ruralidade, tinha o seu lado cultural e desportivo que ainda hoje se reflecte no clube de Oderf. Jovens talentosos na arte de desenhar como Mário Cabral, Zé Paulo, Nuca e Duarte de nha Marintuinha; na música, havia os «Voz Beach», um grupo musical de instrumentos exóticos com os tambores da bateria feitos de lata e forrados de plástico, guitarras de pau com linhas de pesca e clarinetes fabricados com tubos de electricidade e casas de aranha onde arrancavam melodiosas sonoridades. Dos «músicos», retenho o nome de Jorge de nhô Quim e Quim de Joana Tatana. Outros artistas engenhosos como Aníbal de nhô Gabriel, Nunune e Roberto faziam carros de arame que eram perfeitas obras de arte. No futebol, entre pequenos e graúdos, destacavam-se nomes de craques como Gutinha, Humberto, Djodjim, Gute e Djoi Rocha. Certamente que omiti alguns nomes por esquecimento mas creio que todos nós nos identificamos com a história da Ribeira Funda.
A nossa infância foi vivida em alta velocidade. De manhã, tínhamos pressa nos afazeres de casa ou que a sineta do Externato desse o seu último suspiro para nos «libertar» ao que mais gostávamos que era jogar: jogar «matas» no largo da Escola de Nhô Padre, jogar futebol nos vários campos que circundavam a Ribeira Funda, jogar Tchintchom ou uril na Pracinha de Quebrode, fazer acrobacias em qualquer monte de areia da vizinhança, jogar tacada… enfim, a nossa ribeira era um parque de diversão.
A recreação prolongava-se até à noite nas cantigas de roda à frente da loja de Chia, ou brincando de «mãos-ao-ar» à espera do grito dos adultos chamando-nos para a casa. Ainda havia tempo para ouvir uma história sobre bruxas e «canelinhas». Parafraseando a velha canção do Gilberto, «Ribeira Funda deu-me régua e compasso // e o meu caminho pelo mundo eu mesmo traço».
Hoje, cada um tem a sua vida. Alguns amigos de infância não passam de meros «desconhecidos». Não sei se nós nos afastámos uns dos outros ou se foi o tempo que nos afastou; crescemos e cada um percorreu o seu destino; alguns por razões profissionais, outros por razões políticas, mas creio que haverá sempre um ponto de encontro na nossa história: a pequena aldeia da Ribeira Funda!
Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/
segunda-feira, 27 de junho de 2011
quarta-feira, 15 de junho de 2011
SALINEIROS DE CORAÇÃO (XX) – SERÁ O PROJECTO DO ENSINO SUPERIOR NO SAL UMA UTOPIA?
O Fórum Que Ensino superior Para o Sal foi marcado por dois momentos: primeiro, a declaração, nas entrelinhas, da ministra da Juventude que a população deverá preocupar-se mais com acções de «capacitação dos recursos humanos» num claro apelo à formação profissionalizante e, segundo, a apresentação dos resultados de um estudo onde o apresentador diz que em 311 inquiridos na ilha, apenas um se interessa por uma formação na área de turismo.
É legítimo a reivindicação da população. O sonho de qualquer estudante é ter um curso superior, o desejo de qualquer profissional é a sua auto-realização. Na visão de Maslow, cada indivíduo é munido da vocação inata à auto-realização (Maslow, 1970). Essa vocação, o topo da pirâmide, compreende o uso activo de todas as qualidades e habilidades, além do desenvolvimento e da aplicação plena da capacidade individual.
No espaço de pouco mais de um ano, foram realizados três fóruns e mais três palestras sobre o ensino superior e todos se convergiram ao mesmo resultado: a Ilha do Sal tem todas as condições para tal. Quanto ao estudo realizado pela Afrosondagem, a amostragem não é representativa da população tendo em conta a conveniência da mesma e o apresentador teve o cuidado de chamar a atenção para as limitações do trabalho que de modo nenhum deverá substituir a necessidade de um estudo de viabilidade com bases cientificas. As informações da RTC e os comentários nos sites online demonstram a ligeireza da comunicação social no tratamento deste estudo querendo de uma forma intencional legitimar os argumentos daqueles que acham que a ilha não tem condições para o ensino superior.
A Ilha vive um momento crucial na sua trajectória. O desenvolvimento deve ser medido, acima de tudo, do ponto de vista HUMANO e a presença do ensino superior representaria a alavanca capaz de marcar a diferença. A CRIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO SAL NÃO IMPLICA NECESSARIAMENTE A PRESENÇA DE UMA UNIVERSIDADE. É mais fácil a implementação de pólos universitários ou de um instituto politécnico com um projecto de desenvolvimento académico e científico, investindo no conhecimento, na criação do saber, nas competências que qualificam a sociedade civil e na inovação, mas acima de tudo com uma visão direccionada ao empreendedorismo. A estratégia da sua implementação deverá ter em conta que é necessário oferecer à população estudantil um ensino diferenciado àquilo que o mercado nacional vem oferecendo, apostando num ensino especializado, rompendo com a ortodoxia existente, pensar em termos de cooperação com outras escolas superiores já existentes e com as necessidades do mercado local – tendo o turismo como o principal foco de estudo.
A iniciativa dos salenses esteve sempre à frente das estratégias e da visão política dos sucessivos governos. Foi assim com a criação do liceu (antigo Externato), aconteceu com o aparecimento das indústrias salineira e turística e há de ser sempre assim enquanto continuarmos a registar a falta de visão, de estratégia e de vontade política. A última grande machadada no orgulho salense é sem dúvida a não construção da Escola de Hotelaria e Turismo. Tudo indica que brevemente teremos a primeira leva dos formandos no mercado de trabalho e nenhum deles pertence à ilha salineira. De certeza que estarão no Sal procurando o seu primeiro emprego.
Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/
É legítimo a reivindicação da população. O sonho de qualquer estudante é ter um curso superior, o desejo de qualquer profissional é a sua auto-realização. Na visão de Maslow, cada indivíduo é munido da vocação inata à auto-realização (Maslow, 1970). Essa vocação, o topo da pirâmide, compreende o uso activo de todas as qualidades e habilidades, além do desenvolvimento e da aplicação plena da capacidade individual.
No espaço de pouco mais de um ano, foram realizados três fóruns e mais três palestras sobre o ensino superior e todos se convergiram ao mesmo resultado: a Ilha do Sal tem todas as condições para tal. Quanto ao estudo realizado pela Afrosondagem, a amostragem não é representativa da população tendo em conta a conveniência da mesma e o apresentador teve o cuidado de chamar a atenção para as limitações do trabalho que de modo nenhum deverá substituir a necessidade de um estudo de viabilidade com bases cientificas. As informações da RTC e os comentários nos sites online demonstram a ligeireza da comunicação social no tratamento deste estudo querendo de uma forma intencional legitimar os argumentos daqueles que acham que a ilha não tem condições para o ensino superior.
A Ilha vive um momento crucial na sua trajectória. O desenvolvimento deve ser medido, acima de tudo, do ponto de vista HUMANO e a presença do ensino superior representaria a alavanca capaz de marcar a diferença. A CRIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO SAL NÃO IMPLICA NECESSARIAMENTE A PRESENÇA DE UMA UNIVERSIDADE. É mais fácil a implementação de pólos universitários ou de um instituto politécnico com um projecto de desenvolvimento académico e científico, investindo no conhecimento, na criação do saber, nas competências que qualificam a sociedade civil e na inovação, mas acima de tudo com uma visão direccionada ao empreendedorismo. A estratégia da sua implementação deverá ter em conta que é necessário oferecer à população estudantil um ensino diferenciado àquilo que o mercado nacional vem oferecendo, apostando num ensino especializado, rompendo com a ortodoxia existente, pensar em termos de cooperação com outras escolas superiores já existentes e com as necessidades do mercado local – tendo o turismo como o principal foco de estudo.
A iniciativa dos salenses esteve sempre à frente das estratégias e da visão política dos sucessivos governos. Foi assim com a criação do liceu (antigo Externato), aconteceu com o aparecimento das indústrias salineira e turística e há de ser sempre assim enquanto continuarmos a registar a falta de visão, de estratégia e de vontade política. A última grande machadada no orgulho salense é sem dúvida a não construção da Escola de Hotelaria e Turismo. Tudo indica que brevemente teremos a primeira leva dos formandos no mercado de trabalho e nenhum deles pertence à ilha salineira. De certeza que estarão no Sal procurando o seu primeiro emprego.
Evel Rocha
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