segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

SALINEIROS DE CORAÇÃO (X) – CONSTRUINDO A CONSCIÊNCIA SALENSE





Uma homenagem póstuma a João Palavra

Numa das minhas viagens de avião ao exterior, tive a sorte de vislumbrar a Ilha do Sal de longe e, pelos seus contornos e planura, possivelmente influenciado pela sua história, parecia um Porta-aviões. Deus teve o cuidado de colocar os pequenos montes num canto ao norte e bem no meio da ilha colocou o Morro de Curral, o radar, a «torre de vigília» de onde se pode ver a ilha de ponta-a-ponta.
Nesse morro ainda existem algumas grutas circundantes que guardam histórias por contar, onde os primeiros habitantes de um passado não muito longínquo, improvisaram a sua primeira morada. Entre os bravos pioneiros que vieram das ilhas consta o nome de João Palavra, o patriarca da numerosa e simpática família que traz o seu apelido. Tive a sorte de ler o seu testemunho publicado pela Inforasa (nº. 13 Maio, 2002), gentilmente cedido por um ilustre amigo meu. Não resisti em fazer uma viagem ao imaginário da construção deste imenso «porta-aviões» numa visita guiada pelo testemunho de Nhô Palavra.

Após desembarque no porto salineiro de Manuel António Martins, os primeiros imigrantes rumavam em direcção à zona centro da ilha que viria a ser chamada de Espargos, pela abundância desta planta que cobria toda a área onde nasce-ria o aeroporto. A primeira casa construída foi a de Gil Vera-Cruz, dois compar-timentos cobertos com folhas de tamareira e com o chão de terra batida, era a casa de pasto dos operários de construção do aeroporto. A maior parte dos que desembarcavam do navio «28 de Maio» eram clandestinos que fugiam à seca que assolava as ilhas. Aqui, nesta planura desértica e desoladora, depois de um dia esbodegado, cada um munia da sua botija e ia para Palmeira buscar água – único lugar onde se podia ter acesso ao precioso líquido para beber. Na altura, ausência do verde e da sombra, as miragens e o silvar da aragem eram tão fortes que a calacearia, após um dia extenuante de trabalho, tirava aos trabalhadores a vontade de andar mais algumas centenas de metros para chegar à casa de TiGil – daí surgiu o nome de Preguiça, segundo Nhô Palavra.

Sessenta e quatro anos depois da sua vinda ao Sal, Nhô Palavra, no seu jeito descontraído e num riso de quem se sentia vingado pelas agruras da vida, olhou para o Morro de Curral e disse: - Ali foi o primeiro «bloco de apartamentos» desta ilha! Este morro serviu de guarida a muitos trabalhadores vindos das outras ilhas que se refugiavam nas grutas e construíam barracas com os restos dos materiais da construção do aeroporto. A vida era dura mas ganhávamos bem. Quando regressávamos à ilha de origem para passar férias, as pessoas olhavam para nós e diziam que os emigrantes da «Holandinha» tinham chegado à terra.

A primeira piscina construída em Cabo Verde também foi aqui no Sal – a saudosa Pausada arquitectada pelos italianos; no lugar onde fica o Porto da Palmeira, antes, era uma Pausada moderna bem apetrechada e segura com uma piscina natural, conhecida como «prainha». Nos tempos livres, a pista de aviação servia de campo de futebol; cabo-verdianos e italianos, irmanados pela vontade de preencher os tempos livres juntavam-se nas pescarias, nas peladas, na natação, nas «picapadas» de fim-de-semana, trocando copos e anedotas; num crioulo torto mas sempre respeitando as diferenças, os italianos deixaram fama de pessoas sociáveis e alegres.

João Palavra trazia as marcas de uma época difícil que prensaram na sua alma as memórias dos dias passados numa caverna, a mágoa de ver um amigo a ser asilado pela doença de «tracoma» que levava à cegueira, as noites de febre ao relento, à luz de uma lamparina… mas valeu a pena ter participado na constru-ção desta ilha que tanto amou e ajudou a construir como um salineiro de cora-ção!

Evel Rocha
Ildo0836@gmail.com
http://poemasdesal.blogspot.com/

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