quarta-feira, 18 de agosto de 2010

PRIMEIRO CAPITULO DO LIVRO MARGINAIS:
Na ruela poeirenta e monótona, com os pés ruços e descalços, descansá-vamos de uma extenuante partida de futebol sob o sol abrasador do meio-dia. Meu dedão do pé direito estortegado parecia não responder à vontade de correr um pouco mais atrás da bola. Todos os dias, durante toda a minha infância, ser-víamo-nos da tranquilidade da rua para dar vazão ao imaginário do nosso pequeno mundo. Entre brigas e gracejos, mordendo a poeira, entre vaias e aplausos, esfolando a pele acobreada, enfim, conseguíamos empurrar a bola para dentro da baliza de pedras. Batíamos como autênticos heróis. O momento mais sublime do jogo era sempre interrompido com o brado da mamãe a chamar-me para os afazeres de casa. Apesar dos resmungos e protestos, lá ia eu responder à chamada. Meu irmão mais velho trabalhava como ajudante de mecânico e eu estudava à tarde na escola primária da Escola Nova. Antes dos jogos, tinha de ajudar em casa, estudar e limpar o chiqueiro e só depois estaria liberado para alimentar o meu sonho de ser uma grande estrela de futebol. Eu não era menino de um sonho mas de muitos sonhos. Mamãe tinha seu sonho também: queria que eu fosse advogado para meter meu pai na cadeia e casar com a filha do doutor Apolinário. Era difícil para mim conjugar estes dois sonhos, o de estrela de futebol e advogado, por isso tinha de caprichar nos dribles e de me pendurar nos livros. De pés descalços, com os calções remendados, grosseiramente, e uma camisola, que só despia quando estivesse solapada de suor e terra, eu farejava a bola onde ela estivesse. Meu pai era pedreiro do tipo que só voltava ao trabalho depois de gastar o último centavo. Quando tinha dinheiro no bolso, chutava tudo o que lhe aparecia à frente, mandava bocas e desaparecia por uns dias, porém, quando regressava à casa, vinha com aquela cara de órfão desconsolado, esmolando a compaixão da minha mãe que lhe satisfazia todas as suas vontades. Mamãe ganhava a vida como lavadeira. As pessoas traziam suas trouxas acompanhadas de uma lista com o nome de cada peça de roupa e, enquanto mamãe lavava, eu pendurava-as no estendal ou secava-as no chão de cascalho atrás da casa. No fim do dia, recolhíamos as roupas e averiguávamos peça por peça para ver se não faltava nada, antes de entregá-las ao dono. Ela mal sabia ler e escrever. Eu tinha de soletrar o nome das mudas de roupa e, em compensação, ela tecia-me rasgados elogios, É assim mesmo, meu doutorzinho, agora vai estudar um pouco, enquanto entrego essa trouxa. Ela saía pela porta de frente e eu escapulia-me pelo portão para jogar futebol. Jogar é muito mais prazeroso que estudar e os craques ganham mais! As sovas que levava não me doíam tanto quanto o choro da mamãe ao lamentar as desilusões da vida, a frus-trante tarefa de lavadeira mal remunerada e sem tempo para assentar o fogão. Quando não havia roupa para lavar, ela vendia botijas de água à vizinhança. Mamãe lavava roupa de gente fina e, na hora da entrega, recebia o dinheiro, ajuntava as sobras de comida e levava para casa. Calhava-me uma perna de frango quase desnudada, enchia as mãos de batatas fritas frias e encortiçadas, um pedaço de bife meio mastigado, pães dormidos (mesmo cansados de dor-mir!), cocorotas de arroz temperado e fazíamos a nossa festa como se fosse a celebração da segunda vinda de Cristo!
Relembrar os momentos de dificuldades provoca-me um nó na garganta. Na verdade, eu nunca dobrei o cabo das tormentas. Mamãe chegou ao ponto de ferver milho de segunda e metia dentro da panela um pedaço de osso de vaca que guardava só para dar gosto à comida. Era difícil para mim engolir aqueles grãos. Vai fazer algum mandado na casa de Nha Cacilda ou ajuntar o lixo da loja de TiFranco, eles sempre te dão alguma coisa de comer. Eu cá me arranjo, dizia mamãe, resignada à pobreza.
A rua onde nasci e cresci era de terra solta e ferros velhos, crateras onde se amontoavam lixos varridos pelo vento e poças de água de esfregadura mistu-rada com urina que as mulheres despejavam na calada da noite. Por falar em água podre, lembro-me de uma discussão entre uma dona de casa e um vian-dante que levou com um balde de água suja em cima e este chamou de porca à mulher, que se desculpou, dizendo que a água era limpinha, limpinha. Pois, se é tão limpinha porque é que não a deitaste no pote?, retrucou o estouvado. Eu morava na rua de frente e só agora vim a saber que se chamava Rua São João. Ela era o nosso campo de futebol e, à noite, transformava-se no parque infantil dos meninos da zona: brincávamos de roda, de ferro-quente, de trinta-e-um e de casamento-inglês. Um pouco mais à frente, ficava o fundo de Catrapil, uma espécie de um universo à parte: ali se concentrava o lixo de todos os bairros vizinhos. Ouvíamos dizer que o lixo era prejudicial à saúde, que tinha doenças infecciosas, mas era nesse fundo que encontrávamos os nossos brinquedos. Para nós, fundo de Catrapil era um parque de diversões. Qualquer pedaço de madeira ou aparelho avariado transformava-se numa invenção extraordinária. A lixeira tinha múltiplas utilidades. Ao contrário dos meninos de Lomba Branca e do Morro Curral, os nossos brinquedos não eram coloridos, não tinham luzes e não eram telecomandados, mas isso não representava nada diante da nossa imaginação: um pedaço de pau flutuando nas poças de água escura transformava-se num extraordinário cruzeiro singrando o imenso azul do oceano, um cabide quebrado poderia ser uma espingarda de caça ou um volante de uma mota altamente modernizada, os montes de latas velhas, caixotes e garrafas eram prédios que cediam à força das granadas das nossas armas, que na realidade eram pedras que atirávamos para perseguir as ratazanas, os extraterrestres que invadiam a terra e ameaçavam transformar-nos em escravos. Tinham de ser destruídos. Teimosamente, soubemos sobreviver à desigualdade que havia entre nós e os filhos de pais abastados, contudo, na nossa adolescência e juventude não soubemos superar essa mesma desigualdade.
Todos os dias, eu tinha de levantar cedo para ir à padaria de Loja Nova, e colocar-me na longa fila para comprar dez pães de trigo. Às vezes, quando con-seguia subtrair algumas moedas da carteira do meu irmão, comprava doze e comia os dois pelo caminho, pois, o almoço era incerto. Nha Ludevina costumava chamar-me para varrer-lhe a varanda e lavar pratos em troca de um apetitoso prato de cachupa guisada. Eu fazia os trabalhos com a maior satisfação e, por vezes, ela enchia-me os bolsos de rebuçados. Um dia, expulsou-me de vez da sua casa ao descobrir que eu andava a furtar os ovos de manhã e, à tarde, lhe batia à porta para lhos vender. Eu achava que Nha Ludevina tinha sido injusta comigo; numa capoeira com cerca de vinte ovos, eu apenas furtava três ou quatro. Desaforado como eu era, passei a furtar e a vender os ovos todos na loja de TiFranco.
Uma vez, passei cerca de duas horas e meia agachado à espera que uma galinha de pescoço pelado pusesse um ovo. Foi o parto mais longo que presen-ciei na minha infância. Eu precisava do ovo. Eu tinha passado a manhã inteira sem comer nada e a estúpida da galinha prolongava a minha desgraça. O almoço sairia por volta das três da tarde e, quase sempre, era um arroz branco dis-farçado com alguns grãos de feijão ou uma canja com sumo de galinha. Petisco era coisa de gente rica.
Mamãe andava à procura de alguém para preencher alguns documentos que recebera do estrangeiro. Sérgio, estou pensando em emigrar para Itália. A vida está difícil e é a única forma de te ajudar a terminar os estudos. Hás-de ser um grande advogado, um homem de respeito como o doutor Apolinário. Não me importo de me esfolar na casa dos outros para te fazer um homem de amanhã!, disse-me. As suas palavras húmidas revelavam as espessas névoas de sofrimento, um areal de angústias e desassossego que corroíam a sua alma. Mamãe era jovem, o corpo seco e ossudo aparentava o dobro da idade que tinha. Como eu queria falar para ela não se incomodar! No futuro havia de lhe dar tudo o que não teve direito, havia de lhe encher de coisas lindas e caras, seria um grande futebolista e um ilustre advogado, compraria um casarão só para ela e colocaria meu pai numa cadeia de prata!
Papai deixou-nos pouco antes do meu sétimo aniversário. Mamãe gostava muito dele. Era capaz de qualquer sacrifício para segurar o seu homem, contudo, meu pai, um mulherengo de bolsos rotos e parodista inveterado, um boémio a tempo inteiro, não era de se contentar com a vida sedentária. Ela ia buscá-lo nos botequins, arrastava-o pelo colarinho, batia à porta da casa das amantes para arrancá-lo do divã da infidelidade, acendia velas a Santo António na esperança de conseguir a ventura do casamento, mas nada lhe saía de feição. Nha Maria do Monte, uma curiosa lá do bairro, ensinou-lhe um truque para amarrar marido: mamãe despiu as cuecas e o soutien, meteu-os numa panela com água a ferver, pegou em algumas barbas de milho, esfregou-as intensamente no sovaco e entre as pernas, na sua intimidade, e colocou-as na panela. Depois de um bom ferver, dás ao Dadejo este chá milagroso, disse Nha Maria. Era necessário esperar dois meses, mas dois meses representavam uma eternidade e mamãe teve de suplicar à comadre que lhe desse algo que fosse mais rápido.
Não te preocupes, Rosário, disse Nha Maria do Monte, Sei de uma coisa que vai deixar-te com a boca aberta. É dar e pegar: tira essa mixórdia que tens vestido, toma um banho de perfume para purificar o corpo, traz uma fotografia de corpo inteiro com tua imagem e a do Dadejo e um tubo de linha. Vais ter de recitar esta oração de São Truculento trezentas e trinta e três vezes. Não sabes ler direito, mas Sérgio sabe, portanto, ele vai ajudar-te. Enquanto rezas, vais enrolando a linha à volta da fotografia consumando a vossa união. Antes de dizeres «amén», Dadejo estará à tua frente a chamar-te de meu amor.
Mamãe fez tudo direito. Rezava e enrolava a linha, mas sempre com os olhos espertos numa dança frenética entre a porta, o santo e a fotografia. Antes de dizer amén, papai entrou e disse: oi, amor!, olhou para ela, nua e perfumada, maneou a cabeça: mulheres! Rosário, vou-me embora com Virgínia para Boa Vis-ta. Cuidado para não apanhares um resfriado.
Desde aquele dia mamãe parecia ter acumulado todo o ódio deste e de outro mundo por aquele ingrato, mas, apesar de tudo e por longos meses, ela ia todos os fins-de-semana para a praia de Shell fazer o remédio que a curiosa lhe tinha ensinado: Quando chegares à praia de mar, joga três punhados de sal e, a cada punhado que botares, ficas a observar atentamente o sal a desfazer-se na água, enquanto dizes: «Assim como o sal se desmancha na água, o amor de Dadejo e de Virgínia se desmanchará!» Se o amor dos dois acabou não sei, mas o certo é que nunca mais ouvi falar de papai.

MARGINAIS

Gostaria de mostrar minha simpatia por todos aqueles que estiveram aquando do apresentação do meu último livro MARGINAIS.
Conto publicar imagens do evento brevemente.
MARGINAIS é um livro que fala da vivência salense na perspectiva de um jovem marginal, como ele mesmo se intitula.

A TCV e a Rádio de Cabo Verde noticiou o evento de seguinte forma:

O Salão Nobre da Câmara Municipal do Sal acolhe no dia 29 de Julho, pelas 18h00, a cerimónia de lançamento do Livro MARGINAIS, da autoria do autor Evel Rocha (pseudónimo de Ildo José Rocha).

Numa mescla de realidade e ficção, Evel Rocha, numa inquietante radicalidade, propõe uma viagem ao pequeno mundo dos bairros salenses, arrastando o leitor para um turbilhão de imagens e sentidos que reflectem a pobreza e marginalidade vivida por um grupo de jovens, confrontados pela lei e pelos valores sociais.
Nascido na Ribeira Funda, ilha do Sal onde cresceu e estudou. Terminou os estudos liceais em S. Vicente, ingressou para o Seminário Nazareno onde estudou Teologia. Depois de alguns anos de trabalho como pastor e professor secundário, fez a graduação em Psicologia Educacional pelo IESIG. Estudou o Mestrado em Supervisão Pedagógica pela Universidade da Beira Interior (2007) e Psicologia (Couseling, 2009) pela East Boston College em Boston; em 2010, terminou a pós graduação em Desenvolvimento Local e Comunitário.
Para além de Marginais, é autor dos livros Versos d`Alma (1997) e Estátuas de Sal (2003).